terça-feira, outubro 27, 2009

Distanciamento e proximidade


Se a dignidade do homem está no pensamento, então, vamos todos nos esforçar para pensar bem e entender o mundo que nos cerca em nosso tempo. [1]

É difícil, contudo, entender um momento de transição quando o estamos vivendo, quando uma nova concepção de tempo leva-nos necessariamente para um outro conceito de espaço e de velocidade. No presente atual a aceleração predomina e o espaço se fecha alterando o próprio conceito de percorrer o caminho. Nossa corporeidade é cada vez mais virtual marcado por uma ausência existencial no lidar com o outro.

Observar o momento exato em que estamos inseridos, por mais incrível que este possa ser nos coloca em uma condição alienante pela proximidade que nos impede de ver a contemporaneidade. Ser contemporâneo traz uma relação intrincada com o tempo. Estar atual representa o momento exato em que o pensamento fica como que suspenso entre dois estados, mesmo quando queremos pensar bem.

Nietzsche situa a atualidade, a contemporaneidade como uma desconexão. Pertence realmente ao seu tempo, é contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com o tempo, nem se adéqua as suas pretensões e é nesse sentido, inatual. Mas, justamente a partir desse afastamento é mais capaz o que os outros de perceber e de apreender o seu tempo.

A contemporaneidade traz uma relação de aderência e distância do tempo. Os que coincidem de um modo excessivamente absoluto com a época, os que concordam muito com ela, não são contemporâneos, porque não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo nela.

Talvez por isso não possamos ter o afastamento necessário para entender que existimos hoje em duas realidades: uma realidade objetiva com a presença física e outra virtual com a extrapolação do concreto e oposto ao atual, pois carrega só uma potência de ser.

Nessa realidade, por suas características, vivemos sem uma presença física, sem distancias ou superfícies. Nela podemos ser o avatar de tudo aquilo que sonhamos ser e...dizer. Daí vale dar uma olhada no livro, com pouco mais de 80 páginas que se aproxima do assunto: “Do broadcast ao socialcast”, organizado pela Bites e disponível gratuitamente para download com licença Creative Commons.[3] O livro contém 14 artigos escritos por observadores próximos das transformações contemporâneas.


Fontes

[1] "Pensées" de Blaise Pascal, "All the dignity of man consists in thought"
publicado póstuma de 1660.

[2] Friedrich Nietzsche, "Considerações Intempestivas"

[3] para fazer o download gratuito do livro vá até:
http://www.4shared.com/file/140483420/cbbfd6ce/Do_Broadcast_ao_Socialcast.html

domingo, outubro 18, 2009

Eu sou o espetáculo





Todo homem se desenha pelas escolhas que vai fazendo ao longo de sua vida. Nenhum objetivo importante é alcançado sem alguma luta, sem algum conflito consigo mesmo e com os outros. A natureza humana é contraditória e tão forte é a contenda do ser que transcende as condições de convivência do homem na terra.

Vivemos em uma articulação de conflitos e somos contraditórios, não conseguimos viver sem disputas comunicacionais quando interagimos. Minoramos esta discórdia fundamental quando no lidar em uma linguagem aberta ou um entendimento corpo a corpo. Aqui o conhecimento do outro e o que dele se diz induz a maior ou menor credibilidade e estabelece um estatuto do emissor, onde a presença do sujeito que enuncia o discurso pode marcar as expectativas que provoca no receptor.

Ao enunciar atos de informação, de forma oral ou escrita, transferimos fatos e idéias esperando convencer nossos espectadores privilegiados que irão julgar e acolher nossos feitos, ditos ou escritos e repassar esta apreciação ao longo do tempo.

O que falamos e escrevemos é para registro junto a nossas testemunhas. Nossa vida ativa acontece em uma condição testemunhal. Todos querem participação e visibilidade quando produzem enunciados, mas muitos não querem a exposição e o julgamento que disso resulta. No mundo da visibilidade nossa atuação se relaciona a esta condição de convencer e não decepcionar as testemunhas que confirmam o nosso atuar com marcos no caminho de nossa aventura existencial.

Cada um de nos tem várias e diferentes testemunhas: a família, os amigos, os alunos, leitores e os seus pares nas diversas comunidades de convivência funcional. Se não lidarmos bem com a publicidade das trocas de informação a cercearemos pelo temor do julgamento destes espectadores privilegiados. Há um recolhimento ao silencio e a quietude.

A informação não existe sem testemunhas e a memória  que se forma depende desta validação. Os estoques de memória existem, enquanto existirem as testemunhas e as testemunhas das testemunhas do que lá se encontra. A nossa escrita cria, assim, um domicílio documental de memória ao qual podemos sempre recorrer regressando para uma acolhida de atestação. As nossas narrativas mantêm nesta memória iluminada no presente.

Conviver com uma exibição face a face de nossas reflexões é intrincado quando em um existir presencial de uma realidade vivida entre objetos e outros habitantes. Mas, com a entrada da realidade virtual em nossa convivência cotidiana, cada vez mais vivemos a condição de uma existência sem a necessidade de uma presença física. Ficamos alforriados do entreolhar, do gesto, o toque e a sensibilidade de uma linguagem do corpo. Podemos lançar mensagens aos nossos distantes escondidos pela máscara da não presença.

Contudo, isto traz a possibilidade de um radicalismo do viver virtual, que leva a desentendimentos e algumas batalhas comunicacionais são formatadas pela ausência da presença absoluta, pela a carência do contato físico. Os nativos da Internet são os mais propensos a sofrer da Síndrome da comunicação catódica [1]. Alguns nasceram na virtualidade e conviveram com ela, com seus games e gadgets de mediação corporal. São adolescentes eletrônicos, em todas as idades, que se assombram com o vivenciar tête-à-tête, com a compleição física, as falas dissonantes, as emanações voláteis do corpo. Em crise incomunicativa muitos não usam sequer o telefone para mediar disputas. Esta é uma barreira que impede o curso do entendimento no dentro do maior dos fluxos livres, globais e sem território da informação e comunicação.

Quando estamos na comunicação física podemos ver uma postura que traz consigo um léxico presencial esperado que pode ser o definidor para um processo de inclusão ou exclusão no grupo em interação. Códigos corpóreos delimitam ou ampliam os enunciados na expectativa da presença exercida. Nas relações face-a-face fica difícil ser ocultar um estado de espírito do momento e a força do olhar presencial desnuda a máscara virtual de um dialogo, onde o ritmo da voz pode abrigar, uma comunicação mal formada.

Há no viver dos cenários virtuais uma ditadura do “eu espetáculo” em que além de convencer queremos encantar nossas testemunhas expondo as coisas novas descobertas em um navegar em rede ou que nos foi intermediada em uma linkagem @miga. Juntamos, em nosso domínio de convivência, uma coleção de fragmentos de reflexão referenciada, uma fração de conteúdos exóticos e absurdos que são usados como entretenimento ou, ainda, compartilhamos, com uma expectativa de solidariedade, nossa emoção com belo e o inusitado. Viver na memória de nossas fantasias mais que a memória da nossa realidade.

Todos rejuvenescem no ciberespaço das convivências abrigadas, revigorados como por um efeito tipo “Benjamin Button”. Voltamos a uma adolescência querendo “como nos mostrar” com o nosso espetáculo, o show do nosso eu, formando um “Lego” incoerente onde cabe a cada um filtrar o que é relevante. Muito é descartado para o esquecimento por sua incoerência ou extrema simplicidade de um pensamento oxigenado.

Assim nas armadilhas de um se divulgar digital, não postar seria uma opção, para que o pensamento não fique preso a perenidade da palavra escrita. A tão citada frase - scripta manet, verba volant, - a palavra é efêmera e a escrita permanece - pode ser entendida, também, como, a letra mata e o espírito vivifica. Muitos nunca escreveram para preservar a uma liberdade e fluidade temporal para o pensamento. Talvez por isso a decisão de “Bartleby, o escrivão” de Melville, cujo ofício de vida era redigir, em um determinado momento da sua vida para com sua escrita por uma questão de sua própria escolha: “I have chosen not to write again" disse e nunca mais escreveu até morrer. [1] Sábio exemplo que poderia ser seguido por muitos.

Pitágoras foi um grande filósofo grego, responsável por desenvolvimentos na matemática, astronomia e na teoria da música Pitágoras nunca deixou nada escrito - acredita-se que para preservar a linguagem de seu pensamento. Sócrates e Buda nada deixaram escritos e muito se fala do que pensaram e disseram. Cristo pelo que sabemos escreveu uma única vez e poucas palavras que a areia se encarregou de apagar. A escrita nas mãos de um incapaz é como a espada nas mãos de uma criança, dizia Santo Anselmo. Melhor seria então não escrever e só citar? ou lincar? [4]

Seria essa talvez a opção do "linkador" virtual que não produz um conteúdo próprio e em uma escrita consistente e sua; não produz nada de sua própria composição e vive na dominância do cultivo intelectual do seu "amigo" produtor de conteúdos como um refugiado em seu próprio casulo e de lá fica citando indicativos e indícios para a cidade e para o mundo: "Urbi et Orbi". Se coloca, assim como um incomunicador com soberania própria e por sua própria escolha , dentro de um espaço que possui todos os apetrechos e facilidades para uma intensiva difusão das narrativas proprietárias. E por quanto tempo o citador ficará  só citando? Na história do teatrólogo alemão Bertolt Brecht esta incomunicação vence o tempo:

“O senhor Keuner estava tranquilamente em sua casa, quando esta foi invadida por um gigante fardado que o interpelou: “Queres servir-me?” O senhor Keuner, então, foi para a cozinha e passou a preparar comida para o invasor. Durante semanas, meses e até anos, preparou acepipes variados, sobremesas deliciosas e excelentes bebidas para o gigante. Um dia, após muitos anos, o gigante morreu. O senhor Keuner arrastou o cadáver até o fundo do jardim, jogou-o num buraco e respondeu: “Não!” "

A incomunicação do senhor Keuner se revelou mais forte do que o tempo, mas o desentendimento consumiu toda sua vida.

Aldo de A Barreto
(postagem revista em 22/07/2013


Notas:
Publicado na DataGramaZero, Revista de Ciência da Informação, v.10, n.5,out/09 em Colunas

[1] Síndrome da comunicação catódica - excessivo uso de uma superfície capaz de emitir elétrons quando iluminada em uma tela de pixels de fósforo. Exemplo: um monitor de um PC.
[2] Bartleby, o escrivão do Escritor Herman Melville.
[3]Cinco visões Pessoais de J.L. Borges.
[4]Histórias do Sr. Keuner de Bertolt Brecht.

sexta-feira, outubro 09, 2009

A escrita, a interface gráfica e a linguagem





A informação tem variada tipologia. Uma narrativa é um conjunto de expressões inscritas em uma base na multiplicidade de configurações de uma  escrita. Constitui um todo unificado passível de ser distribuído por um canal de transferência.

O discurso de significação é uma elaboração do autor, mas quando distribuída a narrativa associa em sua amplitude: a leitura, o receptor e a sua interpretação ou reconstrução. O significado vem de escritas múltiplas e de várias culturas que entram no diálogo; entram em contestação e se acumulam no leitor. No leitor está o ambiente exato em que se inscrevem todas as referências das quais uma escrita é feita; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino e este destino não pode ser particularmente descrito: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia (Barthes).

A estrutura de informação pode ser sequencial e centrada em uma narração continua devido ao seu formato. Um texto pode, também, ser acêntrico e sem destino certo, composto por varias estruturas que se narram em paralelo. A escrita deu ao homem valores visuais e lhe causou uma consciência fragmentada. Na convivência dos espaços auditivos, a comunicação de enunciados, intercedida por muitas vozes, era limitada no espaço pela distância entre emissor e receptor.

Foi à tipografia que terminou com a cultura auditiva tribal. Permitiu a cultura escrita multiplicar possibilidades de  imiscuir se no tempo e no espaço. O homem do pensamento linear e sequencial classificou e organizou a informação e o fez em modo hierárquico, em uma série contínua de graus escalas, famílias temáticas. Usou uma arranjo por categorias indicando suas subordinações em relação a uma cadeia de parentesco dentro de um universo de termos particularizado.

A passagem da cultura de comunicação tribal ao modo da escrita e da tipografia foi uma transformação profunda para o indivíduo e para a sociedade. Assim, vem sendo a passagem da cultura da escrita linear para  redes digitais com, uma desconstrução e desfamiliaziração temática e o adiamento do significado que é espalhado pelas trilhas dos textos paralelos.

No mundo digital da escrita sem centro marcador configura-se uma nova adaptação na relação do receptor com o conhecimento. O texto tramado como na urdidura dos fios entrelaçados traz uma vinculação e um emaranhado de cadeias imprevisíveis sem qualquer qualificação hierárquica.

Conhecer é como se apropriar de enunciados alinhavados; é como construir uma bricolagem, onde cada junção de pedaços necessite uma permissão para passar  dada pela possibilidade de assimilar . Uma bricolagem que é individualizada para cada andante neste passear por mosaicos.

As escrituras digitalizadas, tramadas e distribuídas em rede recolocam as condições de apropriação da informação pela sua inscrição. A escrita digital em seu contexto de existência admite liberdade ao lidar com o texto livre das amarras da composição aterrada ao código. As palavras não são mais apriosionadas a uma página.

O base da escrita será sempre comum e permanece como pano de fundo, como um elemento sistemático e compulsório. Mas os enunciados são contingentes e acontecem em uma escrita que é uma mediação gráfica desta linguagem comum, mas diferenciada em cada contexto de comunicação. É preciso então estabelecer a diferença entre a escrita estruturadora e a escrita volátil e mutável no dialogo dos enunciados digitais.

A escrita digital é uma tecnologia que se espelha, mas não se subordina aos códigos . Para a informação em fluxo não acontece só uma transmissão de informação, existe um contínuo colóquio interativo de enunciados entre geradores e receptores. Os envolvidos possuem uma afinidade em seus intentos e preocupação com a qualidade do objeto em construção. Os jogos de informação nos colégios virtuais interagem com estruturas abertas, pois existem não pela presença anatômica, mas com uma visibilidade potencial do estar ali.

Uma escrita em formato digital e  de textos intercambiáveis é livre para o encadeamento dos devaneios do receptor no percurso pelas tramas das narrativas. Desta forma é livre da ideação de quem gerou o conteúdo  e dos controladores de formatos e padrões estabelecidos.  O receptor pode percorrer os caminhos de sua interpretação individual livre das amarras dos controladores de uma escrita formalizada e única. São individualidades divergentes que no ato da leitura se separam para sempre.

Aldo de Albuquerque Barreto
revisto em 2013