sábado, fevereiro 27, 2010

Máquinas e mentes




A ciência avança pela invenção de novos instrumentos e pela descoberta de novos conceitos e arcabouço de ideias. Peter Galison e Thomas Kuhn são grandes exploradores do processo de descobrimento cientifico na idade moderna. Galison publicou "Imagens e Lógica" em 1997 e Kuhn "A estrutura das revoluções científicas" em 1962. Os dois livros tem em aparência pouca coisa em comum. O livro de Galison contém centenas de imagens de maquinas científicas e o de Kuhn só palavras. Pois o primeiro acreditava que o avanço da ciência ocorria através dos seus instrumentos e Kuhn pela formulação de novos conceitos e teorias. Um colocava o foco no instrumental o outro nas ideias.

Assim, as áreas científicas tem desenvolvido sua própria cultura em relação à harmonia entre o tratamento que dão ao seu instrumental em convivência com suas ideias. Tradicionalmente os astrônomos, por exemplo, quando iniciam um projeto já tem pronto todos os aparelhos necessários àquela pesquisa. Outras áreas compram seu instrumental ou se associam a campos com a expertise, como os biólogos, no sequenciamento do DNA. Mas, a maneira de lidar com as máquinas na ciência envolve uma enorme diferença de custo e tempo na sua evolução de suas pesquisas. Os projetos de descoberta dos mistérios do céu e o projeto genoma contam a historia da harmonia dos instrumentos com as ideias relacionados ao custo envolvido e tempo de realização de um plano. Existem, ainda, umas poucas áreas que fogem dos instrumentos necessários para realizar seu intento e suas pesquisas e criam um impasse entre o desenvolvimento de suas ideias e as aplicações necessárias para cumprir seu objeto.

Maquinas são importantes, também, para derrubar preconceitos. Ao criticar abertamente o sistema geocêntrico de Ptolomeu, Giordano Bruno acabou recebendo uma advertência formal da Inquisição, que proibia o ensino do sistema heliocêntrico de Copérnico. Mas uma luneta ajudou a derrubar a crendice. Galileu aperfeiçoou a luneta, inventada pelo holandês Lippershey e em 1610 observou montanhas e crateras na Lua e manchas no Sol. Suas descobertas ajudaram a tirar o homem centro do Universo na perfeição dos céus. Mas provou ideias há muito existentes só no papel.

A supervalorização das máquinas incomodou, em 1930, Sigmund Freud que em seu texto "O mal-estar na civilização" escreveu que o homem estava se tornando um deus-prótese, com muitas extensões criadas – e por criar – pela cultura e pela ciência, sem com isso ficar mais feliz. A tecnociência fazia do conhecimento aplicado um fim em si mesmo. No balanço do “Breve século XX”, o historiador Eric Hobsbawm concorda que: “Não houve avanço técnico que não fosse acompanhado de uma pincelada pessimista e sombria sobre o futuro. Mas, não houve um século tão cheio de ideias e ao mesmo tempo tão pouco à vontade com elas desde a retratação de Galileu”. Mesmo, assim, o historiador analisando o século XX diz que, nos últimos cinquenta anos do século XX a humanidade viu inserir no seu convívio mais inovações do que em todo o resto da sua história. O mundo mudou desde 1950 com fortes máquinas e grandes ideias.

Seguindo a fase tecnicista, Paul Otlet lançou em 1932 o seu “Tratado de Documentação” em que pretendia reunir uma considerável quantidade de aparatos mecânicos como o telefone , o telegrafo, imagens em telas, a radiola para transferir de maneira mais adequada a informação de sua fonte aos que dela necessitavam. E, no pós-guerra de 1950, Vannevar Bush preocupado, com o mesmo problema preconizado por Otlet advertia que: "Profissionalmente nossos métodos de transmitir a informação estão envelhecidos em anos e são inadequados para sua finalidade. O tempo total que é gasto em na relação imprópria da escrita versus disponibilização tem uma defasagem alarmante. O conceito de Mendel das leis da genética, por exemplo, ficou perdido para o mundo por uma geração porque sua leitura não alcançou os poucos que eram capazes de se apropriar de suas ideias... grandes realizações se perdem na massa de escritas irrelevantes”. Bush imaginou criar um instrumento para minorar o problema a máquina Memex, unificando os “gadgets” de Otlet em um artefato único que nunca se concretizou e ficou perdido na cultura de uma área que tem aversão a máquinas, mas não pode se explicitar sem o uso delas.

A informação é uma atividade social aplicada que só se apetece a tratar das tramas conceituais de uma ideação não partilhada em consenso pelos seus pares, teorias que não estão no tempo certo com a atualidade de suas máquinas. Mas como realizar seu objetivo e suas aplicações sociais se para isso depende de máquinas, estruturas e fluxos técnicos que desampara.

A validade, a fonte e o próprio conhecimento da área estão se modificam continuamente ao sabor de uma tecnologia intensa e altamente mutante. Cada vez que surge um novo instrumento ou uma melhor máquina para adequar geradores, receptores e um estoque de documentos, as ideias correm atrás para tentar explicar com um arcabouço teórico o que há muito já está sendo utilizado na prática pela sociedade.



Notas:

- Freeman,J.D. , The Sun, the Genome and the Internet, Oxford Press, 1999.

- Paul Otlet - Tratado de Documentação

http://www.youtube.com/watch?v=qwRN5m64I7Y


- Hobsbawm, E., Era dos Extremos – o Breve século XX, Cia. da Letras , São Paulo, 1995.

- Memex - http://www.youtube.com/watch?v=uj6ADC8ezxk&feature=related




sábado, fevereiro 20, 2010

Um terremoto de palavras permitindo uma nova escrita




"Escrever é retirar-se. Não para a sua própria tenda para escrever, mas para a sua própria escritura. Cair longe da linguagem, emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra deixá-la falar sozinha o que ela só pode fazer escrevendo. Abandonar a escritura é só lá estar para lhe dar passagem, para ser elemento diáfano de sua procissão: tudo e nada. Em relação à obra o escritor é ao mesmo tempo tudo é nada. “Como Deus: tens ai a prova de sua onipotência; pois Ele é ao mesmo tempo o todo e o nada” (7)

Assim, seguindo o pensamento de Derrida, também, as Lexias de Barthes são apontadas como fragmentos do texto que caracterizam uma unidade de leitura, um corte completamente arbitrário sem qualquer responsabilidade metodológica. A lexia é o envelope de um volume semântico, a linha saliente do texto plural. O local onde acontece um terremoto de palavras dando ao texto a chance de sair para um outro. O texto mesmo que seja ele o primeiro ou um dos seus muitos entrelaces será sempre quebrado, interrompido em total desrespeito por suas divisões naturais: "no texto se subtrai toda a ideologia de totalidade para precisamente maltratar o texto cortar-lhe a palavra." (6)

Os artesões da escrita estão como a espreita para agregar mensagens, para como um "bricoleur" formar outros textos que permitam novos significados relacionados. No pensamento dos Mitemas de Lèvi-Strauss há o abandono de toda a referência a um centro, um sujeito, um contexto específico ou uma origem absoluta. O discurso nas estruturas acêntricas dos mitos não tem um sujeito ou um centro absoluto. (1)

O mito de referência não deriva unicamente de uma posição central, mas de sua disposição irregular no interior do emaranhado de fragmentos que se interconectam: " O mito e a obra musical são como maestros de uma audiência de executantes. A música e a mitologia confrontam o homem como objetos virtuais onde somente a sombra é atual" (8)

“Peter Gay, em seu livro Modernismo (2), a propósito de Baudelaire diz que a sua voz era “a voz da poesia pura e simples”. Daí a resposta à sua própria pergunta sobre a arte pura, segundo uma concepção moderna: “É criar uma mágica sugestiva, contendo a um só tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.” É o todo estruturalmente sempre um todo". Um conjunto formado, natural ou artificialmente, pela reunião de partes ou elementos, em determinada ordem ou organização desfamiliarizada. O emaranhado de textos digitais são alinhavados com múltiplas sensibilidades.

Vai daí que o estruturalismo de Lévi-Strauss esteve comprometido com a busca de outros universos da arte e para isso, buscou constituir uma lógica do inconsciente nas narrativas das coletividades cujas vozes contam o mundo segundo sua sensibilidade. Expressões de uma mediação gráfica que se esquiva dos códigos fixos no procedimento aberto dos linguajares de convivência.

Para Lévi-Strauss a diferença entre o primitivo e o moderno não está propriamente no campo das formas de representação, mas na forma de expressar estas relações. A condição culinária do autor apresentada no cru e no cozido está coerente com o abandono de toda a referência a um centro, um sujeito ou uma origem absoluta. Assim o discurso das estruturas sem centro determinado não tem um sujeito ou ponto absoluto. O núcleo tutor da narrativa não deriva unicamente de uma posição central, mas de sua posição irregular no interior do emaranhado de fragmentos que se interconectam. São partes que tem significado quando na bricolagem do todo.

Cada conjunto de narrativas pertence a uma ordem do discurso e uma representação gráfica da linguagem. Um conjunto de enunciados virtualmente disponível forma uma rede onde a crua informação pode transformar-se quando cozida em conhecimento. O pensamento da enunciação em tempo real difere do pensamento sequencial interiorizado no formato. Caminhamos cada vez mais para depender de coisas exteriores a nosso corpo na ação das trocas de informação. Exterioridades sensíveis são próteses de alongamento para uma sociabilidade elaborada como uma partitura de poética própria. A escrita constitui-se, então, em uma representação exterior, no espaço e no tempo real, sendo mais que nunca uma um episódio sensível no utilizar das palavras.

Estas exterioridades sensíveis vão juntando partes e peças para formar a matéria essencial do significado, em um contexto que tem um início sem final destinado por forma ou tema. Como o bricoleur Lévi-Strauss, onde sua narrativa inicia em um ponto qualquer do espaço e tempo. A sua estratégia consistia em estabelecer diversos pontos de partida, mas nenhum de chegada e sua ideia de mito como o conhecimento jamais toma uma forma definitiva, pois ao contar um pode surgir sempre um outro, indefinidamente.


Notas:

[1] O Modernismo de Lévi-Strauss texto de Carlos Vogt em Com Ciência No. 108 - 10/05/2009 http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=46

[2] Gay, P. Modernism. Nova Iorque/Londres: W.W. Norton & Company Inc.; 2008. p. 40.

[3] "O cru e o cozido - Mitológicas 1", recensão por Mariza Werneck Mariza Professora Doutora do Departamento de Antropologia da PUC-SP.

[4] Lèvi-Strauss, C., O Cru e o Cozido,. Brasiliense, São Paulo, 1991.

[5] Um mitema é uma unidade de significado que relaciona estruturas temáticas existentes em uma determinada narrativa. O pensamento de arranjo em tempo real mostra um trabalho de composição da narrativa que usa uma estrutura técnica desconcebida. http://www.dgz.org.br/out04/Art_01.htm

[6] Barthes, R., O Rumor da Língua, Edições 70, Lisboa, 1987

[7] Derrida, J., A escritura e a Diferença, Editora Perspectiva, 2ª edição , São Paulo , 1995.

[8] Lèvi-Strauss,C., O Pensamento Selvagem. 3ª edição, Papirus, Campinas, 1989.


* Este texto aparece no Datagramazero de fevereiro de 2010 em Colunas
www.dgz.org.br